quarta-feira, 29 de julho de 2015

POST MORTEN

"... na verdade, esta moldura é a minha prisão... de tão perfeitos traços me retrataste que me sinto afogada neles como se eles fossem a minha própria alma, o cerne do amor que nos inundava enquanto a vida me era dada para viver... lembras-te, meu amor, de todas aquelas cartas que te escrevi enquanto presa dentro de outras grades, linhas estreitas que me afastavam de ti ou que te afastaram de mim... nunca soube o porquê e essa dúvida, que ainda hoje, aqui de cima mantenho, será a minha companhia na eternidade... é ela também que me concede a possibilidade de te ver aí olhando-me aqui nesta parede nua, dentro de mim mesma vazia e tão prenhe de linhas com que me vestiste naquela manhã na cozinha no banco sentada, rindo-me da tua certeza... meu amor, a paz que me preenche não retira a dor que mantive e que comigo trouxe... a paz que me preenche é uma paz por amor a ti mas a dor essa jamais sairá de mim... é um pouco como eu nestes riscos presente na tua mente quando daí em baixo me olhas... resta-me a doçura da lágrima que vejo cair da tua face nesse chão carcomido pelo tempo que não nos foi concedido... dor de mim em teu peito também ele dorido..."

segunda-feira, 27 de julho de 2015

ENSAIO SOBRE A LOUCURA - ÚLTIMA CARTA

“…já é habitual acordar a meio da noite… é sempre naqueles intervalos entre o efeito das drogas que me dão… aproveitei sempre esses momentos para te escrever, meu amor… porém, estou convencida que esta será a minha última carta e, sinceramente, não sei o que te quero dizer… meu amado, meu bem, meu doce, meu tudo, meu ser, minha alma, minha única razão de existir: não sei sequer se irás ler estas minhas palavras… como é hábito e tu sabes, devem ser 4 da manhã… está na hora de mais uma dose e a enfermeira deve estar a chegar… restam-me poucos minutos e estas serão as últimas que vou poder te escrever… as outras cartas que te enviei, onde recordava tudo o que de belo e bom tivemos durante os tempos em que estivemos juntos, também não sei se foram parar às tuas doces mãos, (tão doces de todas as carícias que me levaram ao êxtase e ao delírio, tão suaves que eram, meu amor, tão doces que as sentia em mim como se minhas fossem, como se me pertencessem desde sempre)… não sei se te disseram como estou, não sei se sabes no que me tornei… mas, há cerca de meia dúzia de dias (como se contam os dias aqui?… não me perguntes porque não te sei responder…) ouvi-os dizer que já não havia nada a fazer e que a única forma era o isolamento total e final… vão, pois, privar-me da única coisa que tinha vinda do exterior… a luz da lua nas noites frias porque sem ti e da luz do sol gelado porque não a teu lado… tiram-me também o bater das gotas da chuva que me faziam contar os segundos em que olhava o tecto e recordava tudo o que fomos… vão, portanto, enviar-me para longe de mim mesma, encharcar-me de drogas e mais drogas para que eu não possa reagir e gritar como tenho gritado estes últimos anos… gritado por ti, meu amor, gritado pela tua ausência, pelo amor que tivemos, por tudo de bom que passámos, por tudo o que está gravado na minha alma, na minha pele, no meu ser, na minha totalidade… como dizer-lhes que não estou louca, como dizer-lhes que o que sou é apenas o resultado do que fomos… como dizer-lhes que nada tenho porque apenas e só tu me faltas e que nada mais desejo que não seja o que um dia fomos… queria, antes de ir, antes (eu sei) de morrer de falta de ti, olhar-te apenas mais uma vez; fixar teus olhos e sorrir no teu sorriso… tocar teus lábios e tornar-me num beijo… sentir tuas mãos nos meus seios e ser eu mesma esse toque… sentir teu sexo me penetrar e ser eu mesma a penetração… meu amor, apenas uma última vez e eu ficaria curada… mas tenho consciência (sabes aquela consciência que nos resta no intervalo curto entre as injecções) de que tal não vai acontecer e sei que o meu túmulo estará naquelas 4 paredes sem grades porque sem janelas; já tinha ouvido falar delas quando cá entrei… ouço passos; deve ser a enfermeira do turno da noite… deve ser a próxima toma de mais um calmante… o habitual, a norma, o gesto, o ritual, a morte em ensaio… sei que já não vou ter mais tempo… o tempo terminou… vou levar comigo todas as recordações que me restam porque nada mais tenho nem nada mais quero: quero apenas que não me tirem a recordação do som do teu riso, o sabor do teu toque, o brilho do teu olhar… isso eles não me conseguem tirar… é isso o que vou levar comigo… quando partir para sempre deste corpo físico que já nada sente, irás dentro da minha alma e serei sempre feliz para onde quer que eu vá, tu estarás lá… eu sei, meu amor, eu sei… me despeço para todo o sempre… deixo-te a minha paz, a paz que obtive na loucura do nosso amor, a paz que me toca ao de leve enquanto sonho contigo… nada mais resta… perdoa-me por te ter amado tanto… perdoa-me por não conseguir deixar de te amar… perdoa-me por te levar comigo no meu coração… adeus, meu amor…”

a tua Maria

quinta-feira, 23 de julho de 2015

ENSAIO SOBRE A LOUCURA - SEGUNDA CARTA

“…continuo a acordar todas as noites… não há forma de o evitar… a tua ausência incendeia-me os sentidos… a tua falta provoca-me esta ânsia de te sentir presente… sofro neste sofrimento sofrido de dor e solidão… já não sei quem sou… também não interessa… lembras-te da última carta que te escrevi… sim, daquela em que acordei às 3 e 15 da manhã?… Essa…sim, quando senti a tua falta e me acariciei como se fosses tu que o estivesses a fazer… oh meu amor, como sinto a tua falta!… Não, não sei que horas são… até o relógio me tiraram deste sepulcro… olho pelas frinchas da janela e vejo luar… não sei a quantos estamos… mas isso tem importância?… Que valor terá o dia em que me encontro se não te encontro num só momento?… Desespero neste tormento de sentir a tua falta e não te sentir a presença… Como poderia sentir se tudo o que sinto é dor?… Todos os nossos momentos me passam pela memória e esta lembrança chora, chora como se fosse ela a minha própria alma e eu não existisse… Aqui onde estou não me lembro do que sou, só me lembro de ti e de todos os momentos em que estive contigo e contigo vivi… Sim, agora não vivo, apenas recordo… Dizem que recordar é viver… oh meu amor como pode ser viver se cada vez que me lembro, sinto que estou a morrer… as tuas mãos estão aqui no meu peito apertando-me os seios como tu tanto gostavas de fazer… a tua boca na minha boca e a humidade da tua língua na minha língua… o doce beijo nos meus mamilos e como as tuas mãos me penetravam com doçura e força ao mesmo tempo… oh meu bem, como te amo tanto… como te quero tanto… oh meu bem que lágrimas tão amargas estas que broto a todo o momento… olha, devem ser 4 da manhã… vem aí a enfermeira com a injecção do costume… continuam a dizer que esta minha loucura não tem cura… eu sei que não tem, como poderia ter?… Como me posso curar da tua ausência?… Como posso viver nesta minha morte?… Não sei meu amor, não sei… A enfermeira me aconchegou os cobertores… sabes, está frio e sinto frio dentro de mim… já não consigo falar… apenas olho no vazio… neste vazio que me preenche… Mas não preciso de mais nada, basta-me a lembrança dos momentos que vivemos… basta-me esta dor que vive comigo… bastam-me estas lágrimas… o meu pão de cada dia… o meu alimento neste vazio… sinto os olhos pesados… sei que vou dormir mais um pouco mas estou feliz pois vou dormir contigo nos meus braços, nestes braços que não te sentindo te lembram, te tocam, te apertam contra mim… lembras-te de quando adormecíamos assim?… Como era bom acordar a meio da noite com os braços dormentes e sentir o calor do teu corpo abrasar este meu ser que de tanto te querer te perdeu… oh meu amor, como te amo… como sinto a tua ausência… vou dormir… até mais logo… lembra-te de mim como me lembro de ti… um resto de noite feliz, meu amor…a tua Maria”

segunda-feira, 20 de julho de 2015

ENSAIO SOBRE A LOUCURA

“…acordei por volta das 3 e 15 da manhã… sim, era isso… olhei para o relógio da mesinha de cabeceira e marcava 3 e 15… é um daqueles relógios de ponteiros luminosos… olhei para o tecto sem saber porque razão acordara, mas lembro-me que talvez tenha ouvido a porta de um carro, lá fora, a bater ao fechar-se… olhei de seguida para os buraquinhos das frinchas da persiana da janela e divisei a luz da noite… a rua tem candeeiros e vê-se essa luz ainda que difusa… Senti o corpo morno e passei a minha mão pelos meus seios acariciando os bicos do peito… deixei a minha mão descer pela barriga até sentir o meu sexo e desejei ter-te ali comigo… a minha mão acariciou os pelos púbicos e lentamente introduzi um dedo na minha vagina… deixei-me estar assim durante uns momentos e lembrei-me de ti… lembrei-me de todos os momentos que te tive e que a meu lado te senti… sabes, quando me abraçavas e me sentia pequenina, dessa forma mágica que tinhas de me abraçar… quando me beijavas e me sentia desfalecer ao sentir a humidade dos teus lábios… sabes, não sabes?… sei que sim… lembras-te daquele dia em que nos encontramos pela primeira vez?… o dia em que nos olhamos e os nossos corações bateram?… aquele dia mágico que marcou o resto dos outros nossos dias?… acordei sem saber por razão acordava mas penso que a saudade marca o sonho e, se calhar, estaria a sonhar contigo… lembras-te daquele dia em que estavas sentado no sofá da nossa sala e me ajoelhei a teus pés?… lembras-te de termos feito amor na mesa da cozinha?… lembras-te daquelas férias que tivemos na montanha e lembras-te de certeza de termos feito amor deitados naquele chão branco de neve… lembras-te de, no fim, teres lavado o teu sexo com a fria neve que estava ao nosso lado?… lembras-te como ele ficou pequenino por causa do frio?… lembras-te como nos rimos às gargalhadas?… e daquele dia que fizemos amor no carro?… a meio, deste um grito porque te aleijaste numa perna com o travão de mão?… sim, porque não te haverias de lembrar, se eu me lembro tão bem… e daquela outra vez na praia, escondidos numa duna, quando eu fiquei cheia de areia… acordei às 3 e 15 e já são 3 e 40!… 25 minutos a pensar nisto… sinto-te em mim, meu amor e não estás aqui presente… mas sinto-te… sei que sou eu que me acaricio mas é como se fosses tu… sinto como se fossem as tuas mãos, o teu corpo quente, o teu hálito a maçã que costumavas comer a toda a hora… eras doido por maçãs… nunca soube porquê… nunca considerei isso importante mas era importante para ti, não era?… os teus beijos quentes e húmidos, num saltitar constante entre os meus mamilos e a minha boca… como beijavas tão bem… mas sei que mesmo que beijasses mal, para mim era sempre bom, doce, quente, por vezes abrasador… como eu costumava dizer que acendias em mim o fogo da lareira sempre acesa… eu sei que fui sempre “louca” por ti mas tu sempre gostaste de mim assim… eu sei que sim… eu sentia que tu gostavas de mim assim… tu também eras louco, sabias?… sim, a tua loucura me incendiava e quando nos rebolávamos na cama parecia que tudo se partia e a cama chiava… como nós nos riamos disso… coisas giras e loucas, não eram?… meu bem, como me lembro de ti assim?… porque acordei eu a pensar em ti?… porque é que ainda penso em ti ou porque é que estou sempre a pensar em ti?… sabes que não há um único momento da minha vida que não pense em ti?… eu sei, eu sei que dizem que estou louca… mas eles não sabem que já não estou louca, já estive, sim já estive louca por ti… agora já não estou… estou feliz, triste mas feliz e tu sabes porquê, não sabes?… sabes, eu sei que sabes… já são 4 da manhã… acho que vou dormir um pouco… penso que vou sonhar contigo e depois, depois voltar a acordar para pensar mais uma vez nos nossos dias felizes, nos dias que passamos juntos, naqueles dias em que a loucura era permitida e nada mais interessava… até ao dia em que te foste… nunca soube porquê, porque me deixaste, porque não me quiseste mais… porquê, meu amor?… o sono está a regressar… sabes, deram-me mais uma injecção e vou ter de dormir, sim?… vou dormir mais um pouco, meu amor… mais um pouco… mais um pouco… como ainda te amo… sim, serei sempre a tua Maria, meu amor… tua para sempre… para sempre…a tua Maria..."

terça-feira, 14 de julho de 2015

AMOR DE LOBOS

"...seriam cerca das 3 da madrugada quando na esquina da velha igreja daquela velha aldeia lá muito ao norte, quase a perder de vista a sua própria existência, se juntaram em silêncio 4 esbeltas mulheres de longos cabelos à solta, todas elas vestidas de branco... um branco alvo, como vestidas de noivas, sem véus nem grinaldas mas de branco... sentia-se um vento meio gélido naquele campo verde que se estendia para além das traseiras daquela velha igreja daquela velha aldeia... mas não se notou qualquer tremor de frio em nenhuma daquelas 4 esbeltas mulheres... a cor dos seus corpos roçava a cor do leite que, momentos antes haviam bebido dum mesmo canado... seus olhos negros, profundos, brilhavam quando os raios do luar daquela lua cheia lhes batiam nas faces em todo o seu fulgor... era uma lua grande, de prata, brilhando num brilho baço mas ao mesmo tempo ofuscante... deram-se as mãos umas às outras e continuaram o seu caminho... para trás ficava tão-somente um cheiro a flores... seus pés estavam nus e pareciam caminhar por sobre a erva daninha daquele campo verde... lá ao longe, um pouco mais para cima, divisava-se um morro e no cimo desse morro uma frondosa árvore, erguia os seus ramos numa espécie de posicionamento de espera e de aceitação... como que esperando por elas e pronta a abraçá-las... o silêncio era total e entre elas não se ouvia um único som... quem as visse de longe para cá daquela velha igreja daquela velha aldeia, pensaria que as 4 visões voavam ou pelo menos deslizavam... cada uma das que ficavam na ponta levava um cesto de verga coberto por pano branco de linho feito... e eis que chegaram aos pés da árvore... pousaram os 2 cestos de verga no chão e deram-se as mãos num círculo que abraçou o tronco da árvore frondosa e num misto de magia a árvore como que se baixou sobre elas como que as cobrindo num acto fálico enquanto as suas folhas roçavam os seus corpos... dos cestos, depois de terem desfeito o círculo, tiraram algo que não era visível aos olhos dos outros seres humanos e que não era possível descrever... entretanto, algures, num outro ponto daquela aldeia, deitado numa cama de doces sonhos, um homem alto, bem constituído fisicamente, com o corpo nu coberto de pelos negros, dormia e via-se que estava possuído por algum sonho de lascívio prazer, pois notava-se através da roupa da cama que o cobria que o seu sexo estava excitado e algumas gotas de suor lhe cobriam o peito forte... repentinamente, num passe de feitiço, esse "sonho" transportou-o para os pés daquela árvore frondosa onde se encontravam as 4 mulheres lindas vestidas de branco... ele olhou para ele mesmo e viu-se nu, tal como viera ao mundo e ao ver aquelas mulheres instintivamente levou as mãos numa tentativa de tapar o seu sexo erecto... a partir desse momento aquele homem entrou num espanto e seus olhos não queriam crer naquilo que estavam a ver... elas se começaram a despir e apenas tinham aquele vestido branco sobre as suas peles acetinadas cor de leite... e ele olhava... elas começaram a sorrir e os seus sorrisos eram como um convite ao sonho... daqueles cestos retiraram uns frascos que continham vários fluidos e começaram a untar os seus corpos... e ele olhava e começava a compreender o que via... elas o fizeram ver... uma se untava de mel, uma outra de untava de leite puro de ovelha uma outra de água salgada do mar e a outra de um creme que cheirava a jasmim... e ele não resistiu e o sexo se tornou novamente erecto e o seu corpo parou de tremer... aqueles corpos untados cintilavam quando os raios da lua cheia lhes batia na pele e elas continuaram com o ritual... todo o seu corpo foi untado incluindo os seios, o pescoço, as pernas,... apenas os cabelos soltos ficaram secos... então, elas se aproximaram daquele homem e se roçaram por ele de tal forma que o corpo dele ficou totalmente embebido daquela mistura de fluidos...apenas as mãos dele ficaram secas... e num acto quase que instintivo elas se deitaram no chão sobre os vestidos brancos que faziam de leito, o leito do Amor, o leito da procura do Amor, o leito da descoberta do Amor... e ele se misturou com elas e começou a possuí-las, uma a uma, e também numa mistura arbitrária de escolha... o seu corpo confundia-se agora com o corpo delas e já não existiam 4 mulheres ali... apenas existia uma única mulher onde ele se fundia numa escolha impossível... os ventres juntavam-se e os costados também... ele as tomou por detrás agarrando-se aos cabelos delas com as suas mãos possantes e puxava as cabeças delas num misto de prazer e dor, de agonia e êxtase, como se tudo se pudesse perder num só instante, numa avidez de gozo indescritível ... de repente ele sentiu os diversos odores que o cercavam e aos poucos foi deixando uma a uma até que ficou olhando aquela que cheirava a mar... e, nesse momento, algo de mágico se passou: um raio de luar atingiu-o e ele numa nova forma de sentir, viu lentamente o seu corpo transformar-se em lobo, um corpo coberto de pelo sedoso negro e brilhante ao mesmo tempo que a mulher que cheirava a mar se posicionava como fêmea do lobo... e ele a agarrou pelos cabelos puxando a sua cabeça para o seu peito e com firmeza a penetrou fundo num acto de posse total, num acto de prazer inimaginável onde a fusão foi possível tão-somente por magia... o seu corpo ofegou e o instinto animal veio ao de cima e, no mesmo momento em que lambia todo aquele mar, ele, num último uivo lancinante de prazer, espalhou sobre ela todo o fruto do seu Amor... então os corpos se misturaram e apenas se divisava um casal de lobos fazendo Amor... os seus corpos não conseguiam parar e num espasmo final ela se transformou em maresia, como que alva espuma misturada com o fluído dele... então, naquele silêncio de corpos se amando, um último uivo, não o dele mas o dela, se fez ouvir por aquela encosta abaixo, no preciso momento em que os primeiros raios de sol começavam ao longe, bem perto daquela velha igreja daquela velha aldeia, a despontar... nesse momento, o homem acordou de repente na sua cama e olhou e viu: uma mulher linda, vestida de branco, dormia profundamente ao seu lado..."

segunda-feira, 13 de julho de 2015

NA VERDADE

“… na verdade, a net é um mundo novo, curioso, cativante e diferente… é também
doce mas, ao mesmo tempo, perigoso… perigoso porque os sentimentos podem ser
"adulterados" na sua essência e serem mal compreendidos… não devemos descurar o mundo "lá de fora", o mundo real, aquele que vivemos de verdade e na verdade… é certo, que aqui, através do anonimato deixamos que os nossos medos se transformem em coragem e os nossos gritos possam ser gritados
bem lá do fundo da nossa Alma... este mundo serve para exorcizar os nossos "demónios", mas serve também para encontrarmos novos demónios e novos anjos… o problema está sempre em saber o que é um anjo e o que é um demónio (tudo em sentido figurado, claro)… eu escolhi uma forma de estar aqui, a de dizer apenas; a de ouvir apenas… a de tentar ajudar apenas; a de responder apenas; a de querer que todos me leiam e me ouçam apenas… a de desejar tudo de bom para todos apenas… e este "apenas" já é muito neste mundo… deixamos aqui impressa a nossa marca do ser que vive e que ri e que chora… deixamos aqui impressa a nossa marca de ser que é e de ser que não é… deixamos aqui impressa a nossa marca de ser o que sempre desejamos ser e não o que somos afinal... é um pouco uma peça de teatro sem actores visíveis... às vezes, estes actores encontram-se e criam-se novas vivências… umas vezes é bom, outras não… umas vezes é um doce, outras vezes é um amargo sabor... os problemas aqui vividos são problemas perante os quais nada podemos fazer… apenas podemos dar amor e querer amor… o caminho (seja de quem for) é para ser percorrido… seja que caminho for, não o podemos alterar nunca... a meta existe mas nunca sabemos qual é… o caminho é muito diverso mas tem de ser palmilhado… deixemos que todos palmilhem a rota que escolheram… não tentemos que a vida seja perfeita… aceitemos a vida tal como ela é… não se consegue alterar o que quer que seja… ela já está "escrita", não um destino escrito mas o caminho para lá chegar, está...

As "coisas" não são nunca "obtidas".
As "coisas" são-nos "entregues".

Saibamos viver o que a vida nos dá, da forma que ela nos dá, da forma como
ela se nos entrega de braços abertos… mergulhemos de alma e coração na
caminhada que temos pela frente e esperemos que a "perfeição" esteja no
caminhar e não no caminho que se percorre mas na meta que se alcança…”

quinta-feira, 9 de julho de 2015

O UIVO

...Levantou-se com um sobressalto, que a fez erguer a coluna num impulso sôfrego, um nó de desespero atado na garganta. Segurou-a com uma das mãos, como se contivesse a respiração ainda ofegante. A escuridão estava toda emersa numa tonalidade azul, criando uma atmosfera quase irreal no interior do quarto. Uma estranha luminosidade vinha do exterior, e penetrava no quarto pelo espaço entre as velhas cortinas desbotadas. Dirigiu-se à janela como se algo a chamasse. Espreitou por trás do veludo envelhecido do reposteiro e viu um vidro quebrado, estilhaçado no canto inferior esquerdo. Formava um desenho perfeito de uma teia. Tocou-lhe e automaticamente levou o dedo à boca, sugando o sangue do corte que acabara de sofrer. Soltou um breve gemido de dor, frustrado de fúria. Lá fora, a lua erguia-se gigantesca, majestosa, rodeada de uma aura azul intensa, que cobria todas as coisas de improváveis reflexos. Sentiu um incómodo arrepio, como uma fria corrente enferrujada a mover-se no interior da espinha. O espaço à sua volta, de súbito, ganhava novos contornos. Estremeceu perante um breve desacerto do mundo. Julgou ouvir ruídos, um estalar de madeira, ecos de passos atrás de si, o som das sombras a mover-se pelas paredes do quarto. Voltou-se e tremeu. Deu dois passos incertos, esquecida do próprio corpo. O chão estava alagado; os pés descalços enregelados. Ouvia uma torneira aberta, que pingava lentamente. O som adensava-se segundo a segundo, ecoava pela casa toda, cada vez mais próximo, cada vez mais grave, cada vez mais alto, com requintes de tortura. Segurou a cabeça entre as mãos, crispando os dedos entre os cabelos, tapando os ouvidos quase até ao limiar da dor. Enlouquecia. Abriu as portadas e saiu. Correu para a floresta que se estendia, negra e silenciosa, a sul da casa. Não se vestiu. A camisa branca de algodão finíssimo esvoaçava enquanto corria. Um som distante, longínquo, como um uivo, envolvia agora todo o espaço entre as árvores. Tudo à sua volta permanecia assombrosamente azul. Olhava para o céu e os seus olhos cintilavam, fazendo perguntas às estrelas ausentes. Correu a um ritmo alucinante, rasgando a noite escura com a sua deslumbrante figura pálida. Se pudéssemos congelar o momento, encontrar-se-ia a mais bela fotografia do mundo. Era atrás do lobo que corria. Um lobo que conhecia sem nunca ter visto, que a chamava sem nunca ter tocado um fio dos seus cabelos. Sonhara com ele durante seis noites seguidas, um segundo mais cada noite, até que o sonho a puxou para dentro e ela foi ao seu encontro. Correu atrás dele, movida pelo sonho, dominada pela loucura. Corria como se perseguisse a própria vida, e gritava. Gritava o nome do seu amor, como se lhe respondesse. Correu até ficar sem forças, lentamente vergou os joelhos e deixou-se cair no chão húmido. Tinha chovido nas horas anteriores, muito certamente. Cravou as mãos na terra até que esta lhe doesse, negra e perfumada, entre as unhas. Sentiu um frio muito fino percorrer-lhe a parte de trás do pescoço, desde a nuca, descendo até à cintura. Depois um calor imenso a escorrer-lhe pelos braços. Tinha o lobo junto do seu corpo, o seu olhar ferido de medo. Aproximou-se do seu rosto, conseguia sentir-lhe a respiração na face gelada. Mergulhou os dedos finos no pêlo em redor do pescoço, num gesto ambíguo. Como se segurasse, como se repudiasse. Sentia-o roubar-lhe o sopro de vida, ao mesmo tempo que a alimentava de uma inexcedível sensação de eternidade. A escuridão era tão intensa que a noite parecia estender-se sobre todas as coisas, sem limites, insondáveis as suas profundezas. Reinava uma calma inquietante. O seu coração pulsava acelerado dentro do peito, o olhar num fervilhar insustentável de paixão. Olhou à volta, demorando um segundo a reconhecer o espaço do quarto. Um segundo depois, o outro lado do pesadelo: Está um homem ao seu lado. Está frio. O branco dos lençóis tingido de vermelho. Do corpo imóvel e pálido escapa-se um fio rubro e espesso. O olhar preso no infinito. Um último gesto de angústia suspenso na mão. A boca entreaberta, fixo nos lábios um suspiro, com o nome do seu amor.

quarta-feira, 8 de julho de 2015

QUANDO SE SABE QUE SE AMA ?

“… há dias escrevi-te dizendo as razões pelas quais te amo… escrevi dizendo, afinal, que te amo porque te amo… mais tarde comecei a pensar se existe um momento a partir do qual se começa a amar e se esse momento existe, como sabemos então que se ama?... disse-te também há tempos que o amor não tem tempo nem espaço pela simples razão de que o Amor apenas, é… vive, subsiste, existe, está… é algo definido, concreto mesmo não sendo físico nem metafísico, o Amor é algo que é… sendo assim, não tendo o Amor tempo nem espaço e sabendo nós que amamos, como se sabe que se ama?... dediquei todo o tempo da minha vida à procura do Amor, na busca constante do meu “Graal”, na demanda do porquê do se ser e do se estar e das razões pelas quais aqui estamos… durante todos esses anos procurei e um dia (não interessa quando porque o Amor não tem tempo nem espaço) descobri que o Amor está (é) em cada um de nós… não é nada que se descubra ou possua ou se encontre… ele, o Amor, está em nós mesmos… se ele está em nós então ele é nosso, de nossa pertença e faremos dele o que bem se quiser… daí que, quando afirmo as razões pelas quais eu te amo, estou ao mesmo tempo a dizer que te amo apenas porque sei que o Amor que está dentro de mim, passa para ti… deixa de ser “meu” e começa a “existir” em ti porque apenas e só, te doo esse Amor, numa entrega sem pedir troca… dando-o, sei que o dou e nesse momento passo a saber que te amo… assim, só existe uma única forma de sabermos se amamos (ou quando é que sabemos que estamos a amar), é sabendo que o Amor que estava em nós foi dado a outrem, entregue simplesmente, como dádiva… e esse Amor pode estar num simples gesto, num olhar, num acenar, num toque, num sentir, não se ser o que éramos e passarmos a ser de outrem… nesse momento, quando nos sentirmos parte do outro, saberemos que estamos a amar… em contrapartida, quando soubermos que fazemos parte de outrem também saberemos que estamos a ser amados… porque apenas e só, o Amor… é...”

terça-feira, 7 de julho de 2015

FALTA

"...peguei em mim mesmo e sacudi-me… esperei que saísse algo que tivesse a mais… mas não caiu nada de mim… continuei a sacudir e ouvi algo indefinido… era como que uma recordação dentro da minha alma ou do meu coração… como saber?... peguei então em ti e despi-me de ti… tirei-te de dentro de mim… coloquei-te ali ao meu lado e olhei para ti… foi nessa altura que me senti nu... mas não consegui vestir-te de novo… já não cabias dentro de mim… que fazer então?... sonhos destruídos, caminhos não percorridos ou teriam sido mesmo percorridos?... como é que não reconheço se os percorri ou não?... confusão dentro de mim... sacudo as memórias mas a força centrífuga da saudade as mantêm aqui dentro... fico atento... espero olhar em frente, não me sentir demente, talvez solidão somente… eternamente aqui ao meu lado presente... arrumo os fatos que me vestem a alma e com calma procuro novas roupas que me tapem a nudez que me enregela o corpo, como nado morto, triste e absorto...
...quero ressuscitar, quero simplesmente me transformar, vestir-me de novo, olhar para o espelho e sorrir, cantar, bailar… pegar em mim e voltar a caminhar qualquer que seja o caminho que tenha ainda de palmilhar...
...é que os pés, mesmo de barro, ainda são os mesmos; cansados de andar, é certo, mas os que sempre me sustentaram de pé nesta tremenda e actual falta de fé..."

quinta-feira, 2 de julho de 2015

MEMÓRIAS

“…encosto a cabeça no vidro semiaberto e fecho os olhos por segundos; pela frincha sai o fumo do cigarro ao mesmo tempo que as gotas da chuva varrida pelo vento tenta entrar com força. Não há lágrimas que se comparem às que batem no tejadilho do carro; o vento sopra forte de sul e as ondas alterosas mostram-me um mar agitado porque de si próprio aquelas lágrimas haviam saído uns dias antes. Percorro a visão até ao horizonte cinzento-escuro e vejo um relâmpago descer sobre as águas. Imagem bela e soberba. O céu zangado como me ensinaram em criança. O interessante era terem mais medo do trovão do que do relâmpago. Havia uma cantilena que rezavam fechadas no quarto; algo que no meio das palavras comidas pela reza eu percebia algo como santa bárbara; mais tarde vim a saber que Santa Bárbara tem a ver com as trovoadas, dizem. Imagens da infância que recordo com saudade. Um corpo deitado no chão da sala, uma chupeta e um açucareiro ao lado; e lá ia eu molhando a chupeta no açúcar e chupando; ainda hoje gosto de comer açúcar. Um corpo escondido no meio do centeio que não se dobrava pelo vento; um corte num pé provocado por um vidro escondido. Umas mãos pequenas pegando nas pombas que existiam no pombal do pai. Uma gaveta com postais antigos do Brasil que meu avô trouxera. Um retrato enorme dele e de minha avó no dia em que casaram, pintado a carvão. Era imponente. Um fogão de lenha crepitando. A chuva que entrava pelo vidro começou a molhar-me a face e a cabeça e o cigarro já me estava a saber mal. Liguei o motor, fiz marcha-atrás e arranquei dali para fora. Para lá do mar ficava o sonho, o sonho que sempre tive de o enfrentar, o sonho que sempre tive de me meter dentro dele e o amansar. Nunca conseguido. Os faróis foram ligados porque a penumbra já era demasiadamente escura para ser dia. A noite que se aproximava iria brindar-me com mais recordações; é isso que faço para adormecer todas as noites; relembro imagens distantes e tento reconstruir a vida que já não existirá nunca mais. Puzzles de imagens, de sons e de choros e de risos, de quedas, de corridas, de corpos cheios de calor abraçando-nos. Porque me faz tanta falta esse abraço de outrora? A estrada à minha frente ainda era longa e a noite me esperava…”

quarta-feira, 1 de julho de 2015

FRIO

“…tenho frio, tenho mesmo muito frio… sinto um arrepio dentro de mim que me faz encolher a alma… dobro-me sobre mim mesmo e procuro a razão do frio que sinto… sinto-me cheio de um vazio que se instala no meu cérebro e deste passa para o meu ser… sinto-me entorpecer e as pernas dobram-se e enregelam… o frio que sinto faz-me tremer… não vejo sol dentro de mim e a lua passou já muito ao largo e não deixou rastos… as estrelas estão longe e não me iluminam o suficiente para aquecer o meu coração… é tudo em vão… todo o esforço que faço para me manter à superfície ainda me magoa mais porque as forças me abandonam e o corpo rejeita energias que gasto nesta viagem… e é apenas a minha imagem… mas olho para lá e não vejo nada que me faça regressar… e desejo cada vez mais sair, fugir mesmo sem saber para onde ir… não é dilema não saber o que aí vem… sabe-se que se está a ir nessa direcção e deixa-mo-nos ir como folha perdida nas águas turbulentas de uma sarjeta suja de pó e vazia também de tudo… deito-me dentro de mim e adormeço no meu sonho sem dormir… é um sonho acordado de tão cansado que nem o sono sossega e não me dá trégua… tenho frio, tenho muito frio… sinto um arrepio de novo e mais uma vez me encolho e olho para dentro do copo que tenho na mão… é um copo vazio como eu e também está frio… peço a alguém que o encha de novo e dizem-me que não, que já bebi demasiado… mas eu sei que não, ainda consigo entender o que me é dito e porque razão ouço este imenso grito… tenho frio, tenho muito frio… saio num tropeço dum trôpego andar… passo pelo espelho e alguém do lado de lá olha para mim e sorri… é alguém que eu já conheci, alguém que já esteve aqui comigo, dentro de mim… nunca mais o vi… por onde andará?… no entanto, foi simpático, acompanhou-me até à saída… não o vi mais… não havia mais espelhos naquela sala daquele bar… abri a porta de par em par… respirei o ar frio da noite ainda mais quente do que o frio que eu sentia dentro de mim… olhei o mar que se estendia para lá daquelas escadas que desciam para ele, ele que me esperava depois do abismo… olhei-o e ele riu-se numa risada tremenda que me fez encolher e de novo ver que já nada estava ali a fazer… preciso de dormir, mas um sono que jamais termine… preciso de dormir e afinal o carro está ainda ali… é aquele preto… tem aros prateados nos faróis mas não tem luz, estão apagados como eu… a chave está na minha mão e abrir a porta não custa… já nada me assusta porque o frio me tira a percepção da realidade… tenho apenas uma vontade, dormir, deixar-me ir e não saber nem como nem para onde… tenho frio, tenho muito frio…”