“…encosto
a cabeça no vidro semiaberto e fecho os olhos por segundos; pela
frincha sai o fumo do cigarro ao mesmo tempo que as gotas da chuva
varrida pelo vento tenta entrar com força. Não há lágrimas que se
comparem às que batem no tejadilho do carro; o vento sopra forte de
sul e as ondas alterosas mostram-me um mar agitado porque de si
próprio aquelas lágrimas haviam saído uns dias antes. Percorro a
visão até ao horizonte cinzento-escuro e vejo um relâmpago descer
sobre as águas. Imagem bela e soberba. O céu zangado como me
ensinaram em criança. O interessante era terem mais medo do trovão
do que do relâmpago. Havia uma cantilena que rezavam fechadas no
quarto; algo que no meio das palavras comidas pela reza eu percebia
algo como santa bárbara; mais tarde vim a saber que Santa Bárbara
tem a ver com as trovoadas, dizem. Imagens da infância que recordo
com saudade. Um corpo deitado no chão da sala, uma chupeta e um
açucareiro ao lado; e lá ia eu molhando a chupeta no açúcar e
chupando; ainda hoje gosto de comer açúcar. Um corpo escondido no
meio do centeio que não se dobrava pelo vento; um corte num pé
provocado por um vidro escondido. Umas mãos pequenas pegando nas
pombas que existiam no pombal do pai. Uma gaveta com postais antigos
do Brasil que meu avô trouxera. Um retrato enorme dele e de minha
avó no dia em que casaram, pintado a carvão. Era imponente. Um
fogão de lenha crepitando. A chuva que entrava pelo vidro começou a
molhar-me a face e a cabeça e o cigarro já me estava a saber mal.
Liguei o motor, fiz marcha-atrás e arranquei dali para fora. Para lá
do mar ficava o sonho, o sonho que sempre tive de o enfrentar, o
sonho que sempre tive de me meter dentro dele e o amansar. Nunca
conseguido. Os faróis foram ligados porque a penumbra já era
demasiadamente escura para ser dia. A noite que se aproximava iria
brindar-me com mais recordações; é isso que faço para adormecer
todas as noites; relembro imagens distantes e tento reconstruir a
vida que já não existirá nunca mais. Puzzles de imagens, de sons e
de choros e de risos, de quedas, de corridas, de corpos cheios de
calor abraçando-nos. Porque me faz tanta falta esse abraço de
outrora? A estrada à minha frente ainda era longa e a noite me
esperava…”
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