...Levantou-se
com um sobressalto, que a fez erguer a coluna num impulso sôfrego,
um nó de desespero atado na garganta. Segurou-a com uma das mãos,
como se contivesse a respiração ainda ofegante. A escuridão estava
toda emersa numa tonalidade azul, criando uma atmosfera quase irreal
no interior do quarto. Uma estranha luminosidade vinha do exterior, e
penetrava no quarto pelo espaço entre as velhas cortinas desbotadas.
Dirigiu-se à janela como se algo a chamasse. Espreitou por trás do
veludo envelhecido do reposteiro e viu um vidro quebrado, estilhaçado
no canto inferior esquerdo. Formava um desenho perfeito de uma teia.
Tocou-lhe e automaticamente levou o dedo à boca, sugando o sangue do
corte que acabara de sofrer. Soltou um breve gemido de dor, frustrado
de fúria. Lá fora, a lua erguia-se gigantesca, majestosa, rodeada
de uma aura azul intensa, que cobria todas as coisas de improváveis
reflexos. Sentiu um incómodo arrepio, como uma fria corrente
enferrujada a mover-se no interior da espinha. O espaço à sua
volta, de súbito, ganhava novos contornos. Estremeceu perante um
breve desacerto do mundo. Julgou ouvir ruídos, um estalar de
madeira, ecos de passos atrás de si, o som das sombras a mover-se
pelas paredes do quarto. Voltou-se e tremeu. Deu dois passos
incertos, esquecida do próprio corpo. O chão estava alagado; os pés
descalços enregelados. Ouvia uma torneira aberta, que pingava
lentamente. O som adensava-se segundo a segundo, ecoava pela casa
toda, cada vez mais próximo, cada vez mais grave, cada vez mais
alto, com requintes de tortura. Segurou a cabeça entre as mãos,
crispando os dedos entre os cabelos, tapando os ouvidos quase até ao
limiar da dor. Enlouquecia. Abriu as portadas e saiu. Correu para a
floresta que se estendia, negra e silenciosa, a sul da casa. Não se
vestiu. A camisa branca de algodão finíssimo esvoaçava enquanto
corria. Um som distante, longínquo, como um uivo, envolvia agora
todo o espaço entre as árvores. Tudo à sua volta permanecia
assombrosamente azul. Olhava para o céu e os seus olhos cintilavam,
fazendo perguntas às estrelas ausentes. Correu a um ritmo
alucinante, rasgando a noite escura com a sua deslumbrante figura
pálida. Se pudéssemos congelar o momento, encontrar-se-ia a mais
bela fotografia do mundo. Era atrás do lobo que corria. Um lobo que
conhecia sem nunca ter visto, que a chamava sem nunca ter tocado um
fio dos seus cabelos. Sonhara com ele durante seis noites seguidas,
um segundo mais cada noite, até que o sonho a puxou para dentro e
ela foi ao seu encontro. Correu atrás dele, movida pelo sonho,
dominada pela loucura. Corria como se perseguisse a própria vida, e
gritava. Gritava o nome do seu amor, como se lhe respondesse. Correu
até ficar sem forças, lentamente vergou os joelhos e deixou-se cair
no chão húmido. Tinha chovido nas horas anteriores, muito
certamente. Cravou as mãos na terra até que esta lhe doesse, negra
e perfumada, entre as unhas. Sentiu um frio muito fino percorrer-lhe
a parte de trás do pescoço, desde a nuca, descendo até à cintura.
Depois um calor imenso a escorrer-lhe pelos braços. Tinha o lobo
junto do seu corpo, o seu olhar ferido de medo. Aproximou-se do seu
rosto, conseguia sentir-lhe a respiração na face gelada. Mergulhou
os dedos finos no pêlo em redor do pescoço, num gesto ambíguo.
Como se segurasse, como se repudiasse. Sentia-o roubar-lhe o sopro de
vida, ao mesmo tempo que a alimentava de uma inexcedível sensação
de eternidade. A escuridão era tão intensa que a noite parecia
estender-se sobre todas as coisas, sem limites, insondáveis as suas
profundezas. Reinava uma calma inquietante. O seu coração pulsava
acelerado dentro do peito, o olhar num fervilhar insustentável de
paixão. Olhou à volta, demorando um segundo a reconhecer o espaço
do quarto. Um segundo depois, o outro lado do pesadelo: Está um
homem ao seu lado. Está frio. O branco dos lençóis tingido de
vermelho. Do corpo imóvel e pálido escapa-se um fio rubro e
espesso. O olhar preso no infinito. Um último gesto de angústia
suspenso na mão. A boca entreaberta, fixo nos lábios um suspiro,
com o nome do seu amor.
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