“…eram
extremamente apelativos… estavam ali à minha disposição… em
cima da mesinha de cabeceira… era uma caixinha escura que ela usava
para ter à mão os comprimidos que a faziam dormir… nunca liguei
qualquer importância ao valor daquela caixinha e, no entanto, ela
continha o passaporte para uma viagem, uma sem retorno… nunca
houvera pensado nisso, exceto naquela noite… uma noite em que ela
não estava ali deitada comigo (nunca mais estaria)… uma noite em
que acabara de chegar de mais um bar e depois de ter ingerido um bom
pedaço de álcool para me aquecer a alma tão fria e tão dormente
que já nem a sentia… também, para que queria eu uma alma?… que
é que ela me dá ou me faz?… a caixinha preta continuava ali…
quantos comprimidos teria ela deixado desde a última vez que a
encheu depois de os tirar da embalagem de marca do medicamento?… a
minha mão direita estendeu-se para aquela caixinha preta tão
apelativa como tão consoladora pelo imaginário que já me estava a
provocar… não custaria nada e dormiria para sempre… tão bom…
era disso que eu estava a precisar ou seria de mais um pouco de gin?…
mas para tomar os comprimidos eu precisava de beber alguma coisa e
essa coisa estava também ali à mão… debaixo da cama, talvez
também deitada no chão por cima do tapete… teria ainda algum
líquido?… o suficiente para engolir os comprimidos?… já não
tinha forças para me levantar e ir buscar outra garrafa… a
caixinha preta continuava ali e a minha mão já estava em cima dela…
senti aquela textura (penso que era marfim) sob os meus trémulos
dedos mas senti-a fria e um arrepio percorreu-me a coluna… ou teria
sido outro tipo de arrepio?… não sei quanto tempo estive com
aquela caixinha na mão… não sei quanto tempo demorei a tomar uma
decisão… não sei quanto tempo a olhei com um turvo olhar… não
sei porque razão não a segurei… dei por mim a olhar para ela sem
saber para que é que ela servia e naquele momento apenas me apeteceu
dormir… tão perto do derradeiro sono… tão desejado… ali tão
à mão… reparei então que estava deitado sobre o lugar dela com o
braço direito estendido para a mesinha de cabeceira segurando a
caixinha preta que continha o passaporte para a derradeira viagem…
tantas vezes assim estivemos… tantas vezes senti o seu calor, o seu
respirar, o seu arfar… tantas vezes assim ficamos depois de
fazermos amor… e, neste estúpido momento, repetia aquela posição
estendendo a minha mão para uma viagem… não consegui conter o
choro… não consegui aguentar as lágrimas… não consegui segurar
a caixinha preta… não consegui partir… restou-me a certeza que
no dia seguinte teria mais uma noite de frio…”
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