“…já
é habitual acordar a meio da noite… é sempre naqueles intervalos
entre o efeito das drogas que me dão… aproveitei sempre esses
momentos para te escrever, meu amor… porém, estou convencida que
esta será a minha última carta e, sinceramente, não sei o que te
quero dizer… meu amado, meu bem, meu doce, meu tudo, meu ser, minha
alma, minha única razão de existir: não sei sequer se irás
ler estas minhas palavras… como é hábito e tu sabes, devem ser 4
da manhã… está na hora de mais uma dose e a enfermeira deve estar
a chegar… restam-me poucos minutos e estas serão as últimas que
vou poder te escrever… as outras cartas que te enviei, onde
recordava tudo o que de belo e bom tivemos durante os tempos em que
estivemos juntos, também não sei se foram parar às tuas doces
mãos, (tão doces de todas as carícias que me levaram ao êxtase e
ao delírio, tão suaves que eram, meu amor, tão doces que as sentia
em mim como se minhas fossem, como se me pertencessem desde sempre)…
não sei se te disseram como estou, não sei se sabes no que me
tornei… mas, há cerca de meia dúzia de dias (como se contam os
dias aqui?… não me perguntes porque não te sei responder…)
ouvi-os dizer que já não havia nada a fazer e que a única forma
era o isolamento total e final… vão, pois, privar-me da única
coisa que tinha vinda do exterior… a luz da lua nas noites frias
porque sem ti e da luz do sol gelado porque não a teu lado…
tiram-me também o bater das gotas da chuva que me faziam contar os
segundos em que olhava o tecto e recordava tudo o que fomos… vão,
portanto, enviar-me para longe de mim mesma, encharcar-me de drogas e
mais drogas para que eu não possa reagir e gritar como tenho gritado
estes últimos anos… gritado por ti, meu amor, gritado pela tua
ausência, pelo amor que tivemos, por tudo de bom que passámos, por
tudo o que está gravado na minha alma, na minha pele, no meu ser, na
minha totalidade… como dizer-lhes que não estou louca, como
dizer-lhes que o que sou é apenas o resultado do que fomos… como
dizer-lhes que nada tenho porque apenas e só tu me faltas e que nada
mais desejo que não seja o que um dia fomos… queria, antes de ir,
antes (eu sei) de morrer de falta de ti, olhar-te apenas mais uma
vez; fixar teus olhos e sorrir no teu sorriso… tocar teus lábios e
tornar-me num beijo… sentir tuas mãos nos meus seios e ser eu
mesma esse toque… sentir teu sexo me penetrar e ser eu mesma a
penetração… meu amor, apenas uma última vez e eu ficaria curada…
mas tenho consciência (sabes aquela consciência que nos resta no
intervalo curto entre as injecções) de que tal não vai acontecer e
sei que o meu túmulo estará naquelas 4 paredes sem grades porque
sem janelas; já tinha ouvido falar delas quando cá entrei… ouço
passos; deve ser a enfermeira do turno da noite… deve ser a próxima
toma de mais um calmante… o habitual, a norma, o gesto, o ritual, a
morte em ensaio… sei que já não vou ter mais tempo… o tempo
terminou… vou levar comigo todas as recordações que me restam
porque nada mais tenho nem nada mais quero: quero apenas que não me
tirem a recordação do som do teu riso, o sabor do teu toque, o
brilho do teu olhar… isso eles não me conseguem tirar… é isso o
que vou levar comigo… quando partir para sempre deste corpo físico
que já nada sente, irás dentro da minha alma e serei sempre feliz
para onde quer que eu vá, tu estarás lá… eu sei, meu amor, eu
sei… me despeço para todo o sempre… deixo-te a minha paz, a paz
que obtive na loucura do nosso amor, a paz que me toca ao de leve
enquanto sonho contigo… nada mais resta… perdoa-me por te ter
amado tanto… perdoa-me por não conseguir deixar de te amar…
perdoa-me por te levar comigo no meu coração… adeus, meu amor…”
a tua Maria
a tua Maria
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